
Dr. Hugo Rodrigues, Pediatra e Fundador do Blogue "Pediatria para todos"
A nossa cultura popular está cheia de ditados e saberes que, embora sejam perpetuados de
geração em geração, nem sempre são inteiramente verdadeiros. Por esse motivo, faz sentido parar e pensar nalguns deles, de forma a tentar perceber se têm algum fundamento científico, ou não passam de mitos.
“Os alimentos que fazem cólicas à mãe passam através do leite e fazem também cólicas aos bebés.”
Verdade ou mentira? Mentira!
Esse é mais um mito que se vai perpetuando e que, cada vez mais, os estudos vão demonstrando que não tem fundamento. Na nossa prática somos confrontados com inúmeros receios alimentares por parte das recém-mamãs e, se os fôssemos compilar todos, penso que a única alimentação permitida seria pão, água e pouco mais...! Como para tudo, é preciso bom senso, uma máxima muito importante para reger as nossas decisões.
Neste momento, as recomendações das Sociedades Internacionais de Nutrição Infantil são muito claras: não existe evidência que suporte todas as restrições alimentares que se tentam impor às mães que amamentam. Assim, o que se defende é que a alimentação seja o mais variada e saudável possível. Preocupações com marisco, feijão, couves, tomate, alho, cebola, morango, carne de porco, chocolate, laranjas ou tantas outras são para esquecer, optando por uma boa variedade alimentar. Embora alguns alimentos devam ser consumidos com alguma moderação, não são, de todo, proibidos. É bom não esquecer que quantos mais sabores diferentes a mãe come, mais sabores diferentes o filho descobre, o que se revela bastante positivo.
A teoria de que os alimentos que provocam gases à mãe também provocam gases ao bebé (feijão e couves, por exemplo) também não faz sentido em termos científicos. O que provoca os gases à mãe são as fibras, que são partículas que o nosso organismo não tem capacidade de absorver. Logo, se não são absorvidas, não há hipótese nenhuma de passarem para o leite, o que contraria completamente a ideia de que são alimentos a evitar.
Perante isto, só existem 2 tipos de restrições que devem ser levadas em conta: as bebidas alcoólicas (desaconselhadas durante este período) e o café, sendo esta última uma restrição parcial. Pode tomar 1-2 cafés por dia enquanto se amamenta, sendo que se estes forem descafeinados, é preferível.
“Os bebés precisam de fazer cocó todos os dias"
Verdade ou mentira? Mentira!
Esta é uma questão frequente e que preocupa muito os pais. Geralmente os bebés fazem muitas vezes cocó por dia no primeiro mês de vida, mas depois reduzem significativamente essa frequência. A partir daí começam a definir um pouco o seu padrão intestinal, que não tem obrigatoriamente que obedecer a nenhuma regra. Há crianças que fazem uma ou mais vezes por dia, outros que fazem dia sim / dia não e outros que ficam até mais dias sem fazer. Particularmente nos bebés amamentados ao peito, isso não é - geralmente - motivo de preocupação. As recomendações dizem que eles podem ficar até 5 dias sem fazer cocó (sim, são mesmo 5 dias, não é engano), desde que sejam cumpridos 2 requisitos:
- 1. o bebé estar confortável
- 2. o bebé continuar a libertar gases
Se eles estiverem garantidos, quer dizer que os intestinos funcionam e dá alguma tranquilidade para se aguardar que a Natureza resolva o problema. Só se isso não acontecer é que é preciso dar uma ajudinha, estimulando um pouco o ânus do bebé.
“O aparecimento dos dentes causa febre”
Verdade ou mentira? Mentira! (em princípio...)
Se há algum vilão em relação à saúde das crianças pequenas, é claramente o nascimento dos dentes. À luz da cultura popular, são poucas as situações que causam tantos sintomas, mas a verdadeira questão é se tal é mesmo verdade, ou se não passa de um mito.
Se formos a ver, a erupção dos dentes pode causar uma lista infindável de maleitas, das quais se destaca a febre, mas também a diarreia, tosse, pingo no nariz e rabinho vermelho, entre outras. As explicações parecem muito lógicas, principalmente quando se argumenta que quando os dentes começam a romper o sistema imunitário das crianças fica alterado, o que as predispõe a todos os sintomas de que falei anteriormente.
O problema é que a ciência tem uma visão diferente deste problema. Foram já muitos os investigadores que tentaram provar esta relação, mas todos são unânimes: não existe prova de que os dentes causem qualquer tipo de sintoma. Claro que isto é contrariar uma certeza há muito enraizada na nossa cultura e, pior ainda, contrariar uma constatação de que realmente muitos meninos ficam doentes quando lhes começam a nascer os primeiros dentes (cerca dos 6 meses de idade). Será mera coincidência?
Também aqui temos uma explicação mais ou menos lógica: é por volta dessa altura que as crianças começam a sair mais e a frequentar as creches, o que os expõe ao contacto com maior quantidade de vírus e outros microorganismos. Deste modo, torna-se mais provável que adoeçam mais... Na realidade, acho que a dúvida permanece sempre. Na minha opinião, acho que os dentes têm “costas largas” mas, na verdade, não causam nada ou quase nada do que lhes é atribuído. A única coisa que me parece provável é que provoquem algum desconforto, mas mais do que isso é pouco provável. Em termos práticos, acho também que é um pouco secundário saber se a febre é causada pelos dentes ou por algum vírus, porque o tratamento é sempre o mesmo (medicação para alívio dos sintomas). O principal é mesmo conhecer bem os sinais de alarme das doenças para não deixar passar o que é realmente importante!
“Não se pode tomar banho depois de comer”
Verdade ou mentira? Mentira!
Na nossa cultura é um pouco difícil aceitar isto, mas claro que se pode tomar banho depois de comer. No entanto, como em tudo na vida, há algumas exceções! Na verdade, tomar banho depois de comer não tem mal nenhum, seja imediatamente após a refeição ou mesmo algum tempo depois, desde que a água não seja gelada. Essa é a única situação em que o banho não deve ser realizado depois das refeições, pois a água fria altera a distribuição do sangue no nosso corpo, o que vai desequilibrar os processos digestivos e todas as funções corporais.
Tirando essa exceção, o horário do banho é apenas uma questão pessoal, sem nenhum tipo de consequência negativa para a saúde. É mais apenas mais um mito!
“As correntes de ar fazem mal”
Verdade ou mentira? Mentira!
Tal como a maior parte das pessoas, eu cresci a ouvir que elas podem ser a causa de (quase) todos os males e que temos que nos proteger delas com todo o empenho, sob pena de nos acontecer algo de muito perigoso. Posto isto, e depois de algumas leituras, a minha opinião é que as correntes de ar (que, no fundo, não passam de ar «encanado») não são mais do que um perigo infundado, que se mantém perpetuado de geração em geração, mas que não representa uma ameaça real. Sei que estou a ir contra muitas verdades e contra a opinião de muita gente, mas na verdade não há justificação científica para afirmar algo diferente.
As correntes de ar provocam constipações? Não!
Provocam gripe? Não!
Provocam otites? Não!
Provocam pneumonias? Não!
Não pretendo com este texto defender que as crianças devam andar ao frio, nem nada que se pareça. Penso apenas que é importante desmistificar alguns conceitos, pois muitas vezes, levam a medos não justificáveis e que se vão perpetuando de forma quase cultural.
Artigo originalmente publicado na primeira edição da Revista De Mãe para Mãe, em outubro de 2019.